Introdução
Vamos desenvolver neste livro, baseado nas emissões na Radio Alma que decorreram de Fevereiro de 2017 até Junho de 2018, a noção de cidadania e as suas implicações para as mulheres. Seria importante desde o início dar alguns elementos que permitam compreender o que cobre este conceito.
Inclui para as mulheres o facto de terem direitos civis, políticos e sociais:
-Os direitos civis podem incluir direitos tais como o direito à contracepção, ao divórcio e ao aborto. Como iremos ver, em certos países este último direito é muito restrito ou mesmo negado.
-Os direitos políticos abrangem o acesso ao espaço público e o reconhecimento deste acesso, o direito de pertencer a um partido político, a um sindicato ou a uma organização que os defende.
-Os direitos sociais incluem o direito à protecção (segurança) social, à pensão, ao desemprego…
O direito às quotas é muito mais controverso, como mostra o debate neste livro. Facilita o acesso das mulheres à política. Isto significa que os partidos políticos são obrigados a pôr mulheres nas suas listas. Os nomes têm que ser alternados porque se as mulheres ficarem em última posição nas listas, não tem qualquer chance de serem eleitas. A percentagem inicial é de 33%, mas agora as organizaçoes de mulheres pedem 50%.
Nos anos sessenta houve um grande avanço com a extensão desses direitos. Foram reconhecidos os direitos reprodutivos na maior parte dos países europeus, depois do direito à educação e à saúde. A participação política foi alargada, muitos partidos ou governos fixaram quotas para facilitar o acesso das mulheres a cargos políticos. A cidadania foi consolidada, apesar de ter ainda limitações.
A década mais recente é mais complicada com ataques evidentes a direitos já adquiridos.
Onde se registaram os ataques mais violentos?
O mais evidente e mais fácil de atacar porque há um público que responde às críticas é a interrupção da gravidez. Em vários países, inclusive em Portugal, foram apresentadas propostas de modificação das leis existentes com o fim de limitar as condições e o acesso ao aborto. Cabe ainda mencionar que já havia limites reais na aplicação das leis, resultantes da posição de certas clínicas e do pessoal médico.
Outra limitação é o aumento da violência na sociedade que se manifesta pelo aumento da violência contra as mulheres. A violência estende-se a um novo domínio que é internet. As feministas são constantemente atacadas.
As denúncias dessas violências (campanha “Me Too”) mostram o âmbito quase generalizado do assédio sexual e libertaram a palavra para muitas mulheres que denunciaram os abusos de que foram vítimas.
Nos anos seguintes a decepção veio do progresso lento dos direitos sociais:
-A conciliação das tarefas profissionais com as tarefas domésticas constitui ainda um problema grave para as mulheres e limita as suas possibilidades de evolução nas suas carreiras
-A igualdade salarial tão desejada desde há décadas mostra um progresso lento e ronda a média de 16,3% nos países da União Europeia. Tem de se acrescentar que a diferença é mais importante no sector privado e em certas profissões. A discrepância nos rendimentos é muito mais elevada atingindo 39,6%. Sem esquecer que na União Europeia as pensões das mulheres são 39% mais baixas do que as pensões dos homens. O desemprego e a pobreza são muito mais importantes para as mulheres do que para os homens . São elas que muitas vezes cuidam sozinhas dos seus filhos. A isso tem-se acrescido a crise económica desde 2008 e as políticas de austeridade aplicadas pela União Europeia, sobretudo aos vários países do Sul da Europa.
Houve uma decepção nas expectativas de acesso à esfera pública, em particular aos cargos políticos. Em média, somente 15% dos postos de decisão nas empresas são exercidos por mulheres (dados do PNUD).
Houve uma estagnação ou mesmo um recuo em certos países quanto ao número médio de deputadas eleitas para os parlamentos nacionais.
Os ataques à noção de cidadania e de participação foram lançados pelos partidos populistas, em progresso nos países do Leste da Europa, onde os partidos populistas exprimem ideias antifeministas. A igreja católica também não hesitou em atacar a chamada “teoria do género”.
Quais são as principais forças que ameaçam os direitos das mulheres?[i]
Existe um conjunto de mecanismos políticos e sociais que incorporam as discriminações na sociedade. Tocam essencialmente a raça e a religião, mas igualmente um esquema de discriminação contra as mulheres. A criação de instituições generalistas, incluindo a defesa contra todas as discriminações, resultou numa marginalização da abordagem da igualdade entre mulheres e homens.
A concepção tradicional da família e das relações entre homems e mulheres no casal está ainda a predominar, com a ideia de que o homem é o responsável pela subsistência da família. Isso impediu a modificação das relações sociais e o acento foi posto na questão do emprego dos homens em prioridade, as mulheres sendo consideradas só como uma categoria de trabalhadores. É a diluição da questão do género.
Os movimentos populistas têm a nostalgia do tempo em que o género não era um problema e lançam campanhas não só contra o aborto, mas também contra a homossexualidade, o casamento entre homossexuais…As políticas neoliberais, que reduzem as despesas públicas, começam por cortar em primeiro lugar as despesas sociais, inclusive as que facilitam o trabalho e a vida das mulheres (os abonos de família, as creches,…).
Frente a estas ameaças, a mobilização é mais do que nunca necessária. Esperamos que este livro constitua um contributo útil para inverter a tendência e permitir que as mulheres ocupem o seu justo lugar na sociedade.
A abordagem vai se fazer a vários níveis. Partindo da situação em Portugal, vai-se passar ao nível europeu. Depois examinar-se-ão os casos de alguns países onde as mulheres são mais discriminadas do que nos países europeus, antes de ver o que as mulheres empreendem a nível internacional, em particular nas Nações Unidas.
[i] « Les régimes de citoyenneté en mutation et les inégalités persévérantes », Jane Jenson et « Heurts et malheurs des politiques locales touchant aux droits des femmes », Jacqueline Heinen, Université des femmes, Colloque « La citoyenneté des femmes dans tous ses états », Bruxelles 8 novembre 2018