Capítulo 8: “As Mulheres nas Primaveras Árabes”

26 de Março de 2017
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Retomando o tema orientador deste programa “Mulheres cidadãs, mulheres na Actualidade”, da Rádio Alma Bruxelas 101.9 FM, ou seja “As raparigas são o futuro das sociedades”, desta vez abordamos a questão das jovens que participaram nas Primaveras Árabes, entrevistando Nelly Jazra Bandarra, autora do livro “Femmes dans les Printemps Arabes” (Editora Arab Scientific Publishers, Beirut, 2014)
Patrícia Foito e Camisão: “Gostei do livro “Les Femmes dans les Printemps Arabes”, traz muitas informações e é escrito numa linguagem acessível”. Trata-se de um livro sobre as futuras gerações com um enfoque particular nas mulheres, tantas vezes ignoradas apesar de serem a grande maioria da população. Nelly, por quê este seu interesse pelas mulheres nos países árabes?
Nelly Jazra Bandarra: O meu interesse pelos países das chamadas “Primaveras Árabes” surgiu porque, depois dum período de calma, aconteceu o impensável: as populações insurgiram-se, saíram para a rua e reclamaram o fim de regimes ditatoriais. Na Tunísia primeiro, em Dezembro de 2010, e depois no Egipto, em Janeiro de 2011. Sendo mulher, interessei-me naturalmente pelas mulheres, cuja participação nos movimentos das “Primaveras Árabes” foi muito importante. As mulheres estavam na primeira fila, mas ninguém falava nelas. Na imprensa publicaram-se algumas fotos das mulheres nas manifestações, mas de resto pouca coisa. Algumas jornalistas mulheres escreveram testemunhos e análises, mas esses trabalhos foram pouco divulgados. Falou-se muito mais das mulheres vítimas de violações e maus-tratos. Pouco se falou das mulheres militantes e participantes activas no movimento “Primaveras Árabes”.
Patrícia Foito e Camisão: Como decorreu a elaboração do livro? Como recolheu as informações?
Nelly Jazra Bandarra: Eu vivi na Argélia durante sete anos, conheci os países do Norte de África. Visitei os países vizinhos da Argélia, conheci as aldeias e os habitantes. Foi numa altura em que eu trabalhava na área do apoio ao desenvolvimento agrícola e rural. Aquando das “Primavera Árabes”, eu estava na Europa. Mais tarde fui aos países das “Primaveras Árabes”. Em debates e conferências conversei com muitas pessoas, sobretudo mulheres responsáveis associativas. Quando a situação mudou, houve pessoas que fugiram depois da repressão dos islamistas, houve muitos testemunhos sobre o que se passou. Muita gente dizia que já não cheirava a jasmim, a mítica flor da Tunísia.
Decidi escrever o livro e chamar a atenção sobre os pontos que me pareciam importantes e sobre a não aplicação da legislação que existia, ou que foi promulgada no período revolucionário.


Patrícia Foito e Camisão: O que se passou para que as pessoas viessem para a rua?
Nelly Jazra Bandarra: Os regimes existentes nos dois países de que falo no livro: o Egipto e a Tunísia, palco das mudanças mais decisivas, eram regimes ditatoriais. Eram regimes odiados pelo povo e onde reinava uma corrupção generalizada. Havia também muita pobreza e exploração. Apesar disso houve investimentos importantes em áreas como a educação. Os jovens formaram-se, foram para as universidades, mas quando saíram não encontraram trabalho. Foi essa geração que iniciou as revoltas das “Primaveras Árabes”.
Nas universidades havia mais mulheres do que homens, mesmo mulheres vindas de meios tradicionais. Por isso a sua presença na rua era quase igual à dos homens.
Os jovens não podiam emigrar como fizeram as gerações anteriores, a emigração para os países ocidentais encontrava-se bloqueada. Podiam ir sim para os países do Golfo, mas aí a exploração era grande e os salários pouco interessantes.
Ao mesmo tempo, esta jovem geração sabe manejar a internet, recebe informações e está ao corrente de tudo o que se passa no mundo. É uma geração muito conectada, que alargou a oposição ao regime, concentrada até então num grupo de intelectuais. Não podemos esquecer que havia também a oposição mais tradicional, a dos Irmãos Muçulmanos.
Assim, ao longo dos últimos anos, foi-se preparando uma revolta sem que ninguém se apercebesse disso.
Paralelamente, houve um grande empobrecimento da população, registou-se um aumento do preço dos produtos alimentares básicos, sobretudo do pão. O último aumento do preço do pão foi decisivo na explosão da ira das pessoas.
A corrupção era generalizada. No Egipto e na Tunísia, muitas empresas e activos foram apropriados pelas famílias no poder, tanto a família Mubarak, com a de Ben Ali, respectivamente.
O movimento das “Primaveras Árabes” começou com um evento marcante : um vendedor de legumes que se imolou, em frente de toda a gente, na praça do mercado da pequena cidade de Sidi-Bouzid, na Tunísia, no dia 17 de Dezembro de 2010, porque um polícia lhe tinha exigido o pagamento de uma multa. A imolação não é habitual nos países muçulmanos. Trata-se de um acto de desespero extremo. Mais tarde veio a saber-se que o tal vendedor de legumes era era uma pessoa diplomada, mas sem emprego, reduzida à situação de vendedor ambulante.
O movimento iniciado nesta pequena cidade desencadeou manifestações importantes no centro de Túnis. O movimento foi entendido como uma mensagem dos descontentes. A partir das camadas mais jovens, alargou-se a toda população na Tunísia, primeiro, e ao Egipto, pouco tempo depois. Na Tunísia o movimento iniciou-se por uma sit-in /*/*/ocupação de quatro semanas na praça principal de Túnis, e propagou-se as outras cidades em Dezembro de 2010 e Janeiro de 2011. No Egipto a manifestação principal teve lugar no dia 25 de Janeiro de 2011, na maior praça do Cairo, a Praça Tahrir (que significa liberdade), e simboliza a revolução egípcia. Os jovens, tanto na Tunísia como no Egipto, são de zonas urbanas e apelaram às pessoas para se concentrarem em lugares centrais na capital do seu país, que se transformaram em lugares simbólicos.
Lídia: Não se fazem revoluções sem as mulheres…lembremo-nos da Padeira de Aljubarrota, a Jeanne d’Arc e tantas outras, e outras ainda de que a História não falou.

Patrícia Foito e Camisão: Qual o papel das tecnologias de comunicação e das redes sociais nestas “Primaveras Árabes”?
Nelly Jazra Bandarra: Se não tivesse havido estes meios de transmissão, teria sido muito difícil, para não dizer impossível, mobilizar as pessoas. Mas eu gostaria de citar aqui o exemplo duma mulher que se tornou emblemática neste processo.
A egipcía Asma Mahfouz é uma das primeiras a mobilizar as pessoas para se juntarem, no dia 25 de Janeiro de 2011, no Largo Tahrir. Muitas pessoas responderam como se já estivessem preparadas, saíram à rua e não arredaram pé até que Mubarak saísse do poder. As pessoas acamparam nesta imensa praça, com tendas onde se abrigavam grupos de homens e mulheres. No princípio tudo correu bem para as mulheres.
Os jovens utilizaram as redes sociais para transmitir o que se passava no local das manifestações, em todos os pontos do país. Os que não podiam participar seguiam pela televisão, pela internet e redes sociais. Quase todos tinham um telemóvel: comunicar era fácil.
Patrícia Foito e Camisão: Será que a questão da igualdade entre homens e mulheres foi central nesses movimentos?
Nelly Jazra Bandarra: As redes sociais constituíram um factor de libertação para as mulheres, não só a nível das ideias, mas também a nível do corpo. As raparigas tiravam fotografias nuas em frente a uma câmara e transmitiam-nas pela internet. Uma foto que ficou célebre foi a da Magda, com uma rosa vermelha no cabelo.
Os islamistas, também presentes nas manifestações, não viam com bons olhos a presença das mulheres na rua, a gritar e a reivindicar. Grupos organizados de homens atacaram as mulheres fisicamente, apalpando-as e até violando-as, para as obrigar a voltarem para casa. As mulheres foram ameaçadas de represálias. O episódio mais marcante desses ataques foi por ocasião do dia 8 de Março, na Praça Tahrir. Isso não as impediu, no entanto, de continuarem a estar presentes no espaço público, mas exigiu uma organização por parte dos outros manifestantes no sentido de protegerem as mulheres.
O episódio de 8 de Março (ano 2011) na Praça Tahrir, no Cairo, acabou mal: as mulheres foram levadas para a esquadra da polícia, foram espancadas e torturadas, algumas foram obrigadas a submeterem-se a testes de virgindade. Extremamente degradante. Protestos dentro e fora do país, obrigaram a polícia a libertar essas mulheres. A violência sexual foi utilizada para reprimir e humilhar as mulheres.
Lídia: As mulheres nas ruas gritavam por democracia e empoderamento económico, por aquilo que é justo: a democracia e o direito.
Patrícia Foito e Camisão: As mulheres participam nas revoluções, mas será que beneficiaram das revoluções?
Nelly Jazra Bandarra: É difícil responder sim ou não. As mulheres árabes beneficiaram com certeza do movimento das “Primaveras Árabes”. Novas constituições, consignando a igualdade entre mulheres e homens, foram referendadas e aprovadas. Houve progressos nas legislações, por exemplo, quanto à idade legal para se casar; o direito à educação, a defesa das mulheres divorciadas… Mas ainda há que completar estas leis com outras que faltam. Remeto-vos para os pormenores que estão no meu livro “Les femmes dans les Printemps Arabes”
Na questão da igualdade de género, não se pode dizer que os objectivos tenham sido todos alcançados. Ainda há muito por fazer. A legislação existe, mas parte dela não está a ser aplicada. No entanto, é positivo que haja a possibilidade de as mulheres invocarem as leis para defenderem os seus direitos. É um factor extremamente importante para a libertação da condição social da Mulher.
Dito isto, é preciso ter a consciência de que o sistema patriarcal não desapareceu. O grau de opressão das mulheres depende da classe social, da educação que têm, do lugar onde vivem.
Há críticos que dizem que as “Primaveras Árabes” passaram à história, acabaram, ponto final. Ora bem, é preciso saber que há coisas que ficaram por escrito, e as mulheres que participaram de maneira activa no movimento, continuam a militar por esses mesmos direitos, seja em associações ou grupos organizados da sociedade civil, seja em grupos que entretanto se formaram nas redes sociais.
As mulheres continuam a enfrentar muitas dificuldades na sua vida quotidiana, seja no trabalho, no relacionamento com pais, irmãos, na sociedade em geral. Mas os fóruns de debate na internet são muito úteis e reconforta saber que não se está sozinha nesta luta pelos seus direitos.
Ainda que haja dificuldades, há menos opressão. Pode-se dizer que as mulheres têm mais liberdade para expor os seus problemas. Apesar da nova mudança de regime, depois da queda das ditaduras, as mulheres podem exprimir-se, são menos escravizadas, mas não podem fazer tudo o que bem entendem, como seres livres, por exemplo, não se podem vestir como desejam. As mulheres árabes têm mais limitações do que os homens árabes. Isso tem que ver com o regime político, com a sociedade e com o fortalecimento dos movimentos islâmicos.

Patrícia Foito e Camisão: O que que se passou a seguir ao movimento da Praça Tahrir?
Nelly Jazra Bandarra: Nas primeiras eleições que houve depois de 2011, os islamistas tiveram a maioria no Egipto. Será que havia movimentos políticos democráticos suficientemente organizados para substituir os regimes existentes? Havia movimentos progressistas, socialistas, social-democratas e outros movimentos das esquerdas. Mas não foram eleitos. Os movimentos islâmicos actuaram à luz do dia depois do desaparecimento do regime de Mubarak. Tinham base popular nas aldeais e sensibilizavam as populações em nome de Allah, dizendo que eram os representantes legítimos por falarem em nome da religião. Implantados nos meios rurais e nos bairros de lata, desempenharam o papel do Estado no apoio social às populações (serviços de saúde, escola, apoio material às famílias). Não havia outra ajuda, nem outra presença. Aliás eles já estavam implantados antes das primeiras manifestações de 2011, mas não podiam, nem tinham o direito de aparecer em público, por causa da repressão que havia contra os Irmãos Muçulmanos.
Em zonas urbanas, os movimentos islâmicos actuavam sobretudo nos arredores, perto dos bairros pobres, junto às populações desamparadas, que representavam milhões de votos. Foram as camadas mais pobres do meio rural e dos bairros de lata urbanos que votaram no islamismo político, nos Irmãos Muçulmanos. Os anseios e necessidades da população variam consoante as gerações. O preço do pão, no entanto, fala mais alto. Por isso Mohamed Morsi foi eleito, e com ele a tentativa de controlo de todo a aparelho de estado.

Patrícia Foito e Camisão: Quem vai apoiar as mulheres? Os que foram eleitos?
Nelly Jazra Bandarra: A maior manifestação no Egipto foi contra o governo de Morsi: quase 23 milhões de pessoas na rua. Ou seja: a recusa da ideologia islâmica.
Não será esta ideologia islâmica que vai apoiar os direitos das mulheres. Os islamistas são contra a evolução e a favor do papel tradicional da mulher, limitando a sua intervenção na sociedade.
É preciso dizer que Mohamed Morsi foi deposto, também porque a sua política se revelou um desastre. Ele não foi capaz de resolver os problemas económicos e sociais do Egipto. O país vivia dos recursos do turismo e dos pagamentos vindos do Canal de Suez. Sem esses recursos era impossível ter meios para fazer evoluir a sociedade.

Patrícia Foito e Camisão: Qual foi a reacção da Europa em relação às “Primaveras Árabes”?
Nelly Jazra Bandarra: Os países europeus tiveram medo dos movimentos. Tinham boas relações com os regimes anteriores, faziam investimentos, e esses países eram importantes destinos turísticos para os nacionais dos países europeus. Pode-se dizer que a força das manifestações foi ignorada. Não houve um grande interesse, nem houve apoio aos movimentos democráticos ou social-democratas. Em contrapartida, os grupos islâmicos receberam muita ajuda de outros países árabes, mais conservadores.
Por outro lado, os países europeus tiveram medo de serem acusados de pós-colonialistas. E não sabiam com quem estabelecer relações, em quem confiar. Não conheciam os novos movimentos surgidos das “Primaveras Árabes”. As novas personalidades na cena política eram jovens e com pouca experiência do mundo político.
No Egipto, Mohamed Morsi ficou pouco tempo no poder, enfrentando forte oposição que receava que o poder voltasse à rua. Nesse contexto, a intervenção do exército levou ao poder o General Abdel Fattah al-Sissi.
Voltando aos direitos das mulheres: estes ficaram salvaguardados, o princípio de igualdade de género foi inscrito na Constituição, aprovada por referendo. Mas a liberdade e o progresso são limitados. A nova geração de mulheres vai ter de lutar para continuar a avançar. A evolução será lenta. O espaço público é mais dificilmente acessível. Manter o nível de educação para todos é dar oportunidade às novas gerações.
Há países árabes onde a situação das mulheres é muito pior do que aquela que existe no Egipto e na Tunísia. Temos que recolher mais informaçoes sobre a condição das mulheres em outros países árabes, como por exemplo nos países árabes do Golfo. Mas os paises que tem pior condições são o Iémen e a Arábia Saudita.

Segundo a classificação internacional do Relatório do World Economic Forum de 2016, o Iémen, está o ultimo na classificação como sendo o pior país, é seguido pela Síria, a Arábia Saudita, o Qatar e o Koweit.

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